domingo, 28 de dezembro de 2008

Mitos e crendices em oftalmologia

A cultura brasileira, formada pela fusão sincrética dos povos que nos deram origem, é espectralmente multiforme e rica. Sofremos influências das superstições dos indígenas, das crendices dos africanos e da ignorância dos incultos desterrados da Europa. Este panorama histórico aliado ao nosso caráter colonial e atrasado e à baixa escolaridade de nossa população é o componente etiológico perfeito para fazer prosperar mitos ao longo de nossa história. Os mitos se solidificam e ganham status de verdade inquestionável ao serem reportados de geração a geração. Quem nunca ouviu que não se pode tomar leite após ter comido manga? Este mito originou-se de uma invencionice dos senhores das fazendas leiteiras do Brasil antigo, interessados na economia do leite tomado por colonos e suas famílias. Uma vez tendo comido a fruta tão comum em nosso solo, deveriam se abster da ingestão do leite. Todos os campos do conhecimento e todas as áreas de atuação em nossa pátria são profundamente influenciados por mitos. A medicina e, em particular, a oftalmologia não são exceção à regra. Existem mitos que são um jocoso equívoco de um tema degenerado ao longo do tempo, uma espécie de "telefone sem fio" no qual a informação se trunca na transmissão. Um bom representante deste grupo é a crença de que "formiga ou larva de goiaba são bons para a vista". Esta afirmação tem, ao longo do tempo, elevado os tais insetos a status de iguaria com propriedade de devolver ou preservar a visão. Não há evidencia científica de qualquer propriedade destes animálculos neste sentido. O original deste pensamento diz exatamente o seguinte: "formiga ou larva de goiaba são bons (testes) para a visão", ou seja, se o indivíduo consegue enxergar as diminutas dimensões de um ou a camuflagem de outro, tem boa visão. Mitos também são formas sociais de manutenção da moralidade e bons costumes. Diz-se que processos inflamatórios palpebrais, como o terçol, são resultados da furtiva contemplação de uma mulher desnuda por um buraco de fechadura. Em outras ocasiões, mitos são a exploração de um desejo nosso. Quem não conhece um míope que não tenha gasto tempo se esforçando com exercícios que prometem deixar a visão perfeita? Crendices podem apoiar práticas de saúde pública equivocadas e incompetentes. Eloqüente representante deste grupo é o uso de água boricada. Água boricada, ácido bórico diluído em água, é um fraco antisséptico usado na época da ditadura militar como política de saúde pública para deter a galopante progressão do tracoma. Tal indicação foi magnificada com a divulgação do mito de que água boricada é uma espécie de panacéia oftalmológica. Ainda hoje este mito está tão profundamente arraigado em nossa cultura que assistimos ao uso de água boricada para conjuntivites, irritações, baixa visão e outras situações mais. Um princípio correto às vezes se veste de roupagem quimérica e se torna em mito. É o caso da crença de que cenoura faz bem aos olhos, já que coelhos não usam óculos! Na verdade, vegetais alaranjados e de folha verde escura são fontes de betacaroteno, substância que dá origem à vitamina A, indispensável para a saúde dos olhos. No entanto, o esmero no consumo destes alimentos não incrementa nossa acuidade visual. Os óculos são fonte de variados mitos. Considera-se popularmente que o uso de óculos viciam e trazem dependência deles. Com efeito a visão não se deteriora com o uso dos óculos, mas estes fazem o indivíduo experimentar o que é enxergar de modo nítido. A explicação de fenômenos observacionais que não compreendemos pode ser a gênese de um mito. Assim é que se acredita que ler em um veículo em movimento descola a retina. Não há qualquer base para tal conclusão. O que se tem é que certas pessoas apresentam um conjunto de sintomas chamado vagotonismo em condições como leitura em um veículo em movimento. Estes sintomas incluem tonturas, náuseas e até vômitos, mas não descola a retina. Mitos podem ser folclóricos. Neste sentido se afirma que pó de asa de borboleta ou mariposa podem cegar. A auto-medicação gera mitos perigosos. Um bom exemplo é a popular indicação de leite de peito para conjuntivites. Nunca se comprovou tal capacidade do leite materno e não é demais recordar que se contaminado com microorganismos como o vírus da hepatite B ou da Aids transmite doenças ao ser instilado na superfície inflamada dos olhos. A necessidade de incutir bons hábitos nas crianças aliada ao baixo aporte cultural é a explicação de mitos como o que diz que se voluntariamente entortarmos os olhos e tomarmos "um golpe de vento" ficamos estrábicos ou se evertermos nossas pálpebras corremos o risco de tê-las sempre evertidas. A busca por situações que nos motivem "uma folga forçada de nosso trabalho" é uma explicação para o mito de que é bom pegar conjuntivite. De fato conjuntivite viral é uma afecção muito comum, mas passível de complicações potencialmente graves. A valorização mística de objetos é a explicação do mito que orienta se aquecer por fricção uma aliança de casamento e colocá-la sobre um terçol. Na verdade, não há razão para o uso do anel, por ser de ouro ou por ser uma aliança de casamento. O ponto aproveitável é a aplicação de calor local, que efetivamente reduz esta flogose. Mitos são apanágio de baixo nível cultural. Nossa população precisa incrementar seus processos educacionais e nós, formadores de opinião em nossos nichos de influência, devemos multiplicar informação. Somente com educação poderemos nos livrar dos mitos. A educação de nosso povo nos levará a um estágio em que os mitos hão de ser apenas referências folclóricas de nossa história. Livres de mitos nos auto-medicaremos menos, compreenderemos melhor os fenômenos relacionados à nossa visão e caminharemos um pouco mais em direção a um estilo de vida que nos permita de "olho nos olhos" enxergar sempre mais e melhor!

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